5.12.08

Truz, truz. Quem é?

Ontem á noite tocaram á minha campainha. Estranhei. Desde que vivo sozinha que estranho visitas não anunciadas previamente, fico desconfiada. A única pessoa que poderia aparecer não o faria, sabia-o bem. Á porta estava um casal. Peditórios ou vendas, ocorreu-me. Não estava para aturar ninguém. Mais a mais a porta não tem corrente, e sozinha…não corro riscos. Faço de conta que não está ninguém, e enrolo-me no sofá. Depois lembro-me do tempo em que eu também tocava às campainhas, (não, não era na brincadeira mas em trabalho), e experimento um sentimento de culpa.

Durante os cinco anos da faculdade, trabalhei aos fins-de-semana, férias e feriados como colaboradora do CESOP da Universidade Católica. Graças a estes trabalhos pude pagar o meu traje académico, os meus pequenos luxos como cd’s, livros e maquilhagem, a minha viagem de finalistas. Os trabalhos consistiam em sondagens de opinião sobre determinado tema realizados via inquéritos (anónimos) realizados porta a porta. Cada equipa (de 3 no mínimo e 5 no máximo) ia para uma localidade diferente com um determinado número de inquéritos para realizar, sendo que não podiam ser feitos na rua nem a menores. Os temas iam desde a política (projecções eleitorais), á saúde, ao referendo do aborto, o país, etc. Graças às sondagens tive o privilégio de conhecer uma boa parte do nosso país. Fui a pequenos lugares que nem vinham no mapa. Conheci o Portugal profundo. O Portugal do analfabetismo e da pobreza, do isolamento e da solidão. Havia dias em que chegava a casa muito cansada do trabalho que era feito de horas seguidas a pé. Mas muitas vezes senti-me ainda mais cansada por ver como tantas pessoas vivem tão mal, com tão pouco e ainda assim cheias de generosidade a ponto de se oferecerem para partilhar a refeição, como uma certa senhora já muito idosa “Ó menina quer almoçar connosco? É pouco mas dá para os três.”. É claro que há episódios que ainda hoje me fazem rir. Como o da senhora que me abriu a porta e teve uma reacção inédita. Muito entusiasmada gritou para dentro de casa: “Ó homem vem cá que está aqui a televisão!!!”. Estávamos a fazer um trabalho de projecção eleitoral numa terrinha lá para os lados de Castelo Branco, num lugar mesmo pequeno, e cada um trazia uma caixa onde o inquirido deveria colocar o boletim como a sua simulação de voto que tinha do lado de fora o símbolo da RTP (que era o cliente do CESOP naquele trabalho). Nem me deixou falar para me apresentar. E eu dividida entre a vontade de rir e a necessidade de explicar o que estava ali a fazer.

E ontem, só porque me tocaram á campainha, recordei os anos em que mais fui para fora cá dentro, os anos em que mais aprendi e cresci.

 

Cat

10 comentários:

Paulo Lontro disse...

Mais ou menos semelhante é o facto de eu receber frequentemente fornecedores / vendedores. Já passei pelo outro lado e não consigo deixar de pensar no que eles sentem em cada momento durante o processo da venda. Durante anos fui formador de vendedores e dói-me o coração ao ver tipos, com vocação para tudo na vida menos para serem vendedores, a afundarem-se de cada vez que abrem a boca. Como me apetecia dizer-lhe para se dedicarem a outra coisa mas... tempos complicados estes, é que eles não trabalham para pagar o meu traje académico, os pequenos luxos como cd’s, livros e maquilhagem ou viagem de finalistas... infelizmente têm coisas bem mais importantes para pagar.

Anonyma disse...

Essas sondagens também me trazem à memória bons momentos: a amizade e o companheirismo! Conheci algumas pessoas fantásticas! Acho que até foi assim que nos tornámos amigas! :)

Também tive a experiência como comercial/vendedora. Muito sucesso e muito dinheiro. Acho que me senti como uma administradora de um banco. :) Mas eram tempos que não voltaria a repetir. Apesar de ser muito importante, o dinheiro não é tudo na vida!

Beijocas,

Cat disse...

Paulo, por isso mesmo, por terem coisas bem mais importantes para pagar, é que me atormentou a culpa de não ter aberto a porta.


Anonyma, como sabes, se me fosse possivel eu não seria vendedora de coisa alguma. As sondagens eram duras, mas aquele (pouco) dinheiro sabia tão bem...

TM disse...

E que bom que é quando essas recordações nos assaltam assim do nada, para os deixar rendidos à sua magia, ao momentos agradáveis que nos trazem... :)

J. Maldonado disse...

Eu também não gosto de atender esse tipo de pessoas à noite, quando chego a casa, cansado dum dia stressante de trabalho, mas por vezes lá abro a porta e oiço o que eles tentam impingir. É o trabalho deles, mas, feliz ou infelizmente, o que me tentam oferecer, geralmente já tenho em casa ou então não me desperta nenhum interesse...

Cat disse...

Tm, é verdade que há muito tempo que eu não pensava nos tempos das sondagens. Devo estar a ter um ataque de nostalgia. ;)


Maldonado, é precisamente isso que me acontece a miaor parte das vezes. E fazer-lhes perder tempo para depois dizer-lhes não, obrigada, também não me faz sentir melhor.
Bem-vindo!

Shelyak disse...

Por pequenas coisas como essa, tantas vezes que nos vem à recordação tempos do nosso passado. Fizeste-me lembrar o ter visto um puto à boleia num eléctrico e, a partir daí, recordar os meus tempos de adolescência e afins (e mereceu um post, antepenultimo).
Beijinhoooooo
:))

Cat disse...

Shelyak, é curioso como tem sido frequente pequenas coisas trazerem-me á memória outras em que não pensava há já tanto tempo. Estou muito habituada a deixar o passado no passado e agora parece que estou a ser visitada por ele. Beijocas

najla disse...

Também em tempos de universidade aplicava inquéritos....tal como tu! Mas a mim não me pagavam, pois fazia parte do curso.
No entanto, eu não consigo não abrir a porta a alguém. E até aos inquéritos por telefone, respondo sempre - algo repelente aos meus amigos!
Às vezes também me sinto incomodada, mas mais ficaria se não respeitasse o trabalho destas pessoas....
Adorei o texto, Cat, por também me teres feito relembrar.
Beijos

Cat disse...

Najla, de todas as vezes que respondi a inquéritos só pensava "vá tu também já fizeste isto...". Temos que ser uns para os outros não é?

beijocas